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“Tudo representa: nada é”.
Bergman revisitado – uma conferência no seu centenário (1918-2018)

“Everything represents: nothing is”.
Bergman revisited – a Centennial Conference (1918-2018)

“Das Bekannte überhaupt ist darum, weil es bekannt ist, nicht erkannt”
“O bem-conhecido, precisamente por ser tão bem-conhecido, não é conhecido”
(Hegel, Fenomenologia do espírito, Prefácio)

O ano de 2018 comemora o centenário do nascimento de Ingmar Bergman. Para celebrar e estudar o legado artístico deste grande mestre, organizam, a Universidade de Évora – através do seu Departamento de Filosofia e do grupo de estudos fílmicos Cinema-fora-dos Leões – e a associação cultural Colecção B, numa parceria com a Fundação Bergman, a Embaixada da Suécia em Portugal e a Leopardo Filmes, e com o apoio da DRCA, da FEA, e dos centros de investigação CHAIA, Práxis e CFUL, uma Conferência Internacional a decorrer nos dias 24-27 do próximo mês de Outubro, bem como um ciclo seleccionado da obra cinematográfica do realizador, na cidade património mundial de Évora.

Desde a sua imponente presença no centro da paisagem do ‘filme de arte’ europeu, um Bergman porventura demasiado bem-conhecido reserva todavia, ainda hoje, um enigma fundamental no cerne da sua obra, toda ela tecida de uma complexíssima rede de questões fundamentais, regidas na interrogativa: como definir – se o há – o núcleo essencial de sentido no pensamento artístico bergmaniano? Ou, ampliando o horizonte da pergunta: que traço ou traços estilístico-formais, estéticos, temáticos, filosóficos, especificamente fílmicos, performativos, circunscrevem essa indesmentível unidade de sentido que, porém, sempre escapa ultimamente à enunciação?
Por outro lado, considerando agora, a par do realizador, o escritor, o argumentista, o encenador, o produtor, o director de teatro, o homem de cultura repassado de referências interartísticas e mobilizador de engenhosos recursos intermediais que vão da literatura à música e da arquitectura à pintura, mas também da alta cultura ao mundo popular do circo e dos saltimbancos – a designação ou ‘marca’ Bergman passa a reportar-se a um continente cuja vastidão e complexidade interna se encontram ainda por explorar.
O franqueamento público de parte dos seus arquivos, através de edições parciais dos seus escritos, a acessibilidade dos seus argumentos originais, acrescentam ainda outras tantas vertentes reveladoras ao poliedro Bergman, tesouros que exigem o aturado labor do académico rigoroso e exaustivo, e que convidam ao encontro partilhado de uma comunidade de entusiastas em simpósio científico: de tal processo dá também testemunho o incremento internacional dos estudos e ensaios, das conferências e dissertações, consagrados ao polifacetado criador sueco, avolumando um reportório bibliográfico que o recente ‘regresso a Bergman’ (ou será de Bergman?…) não cessa de relançar e de aumentar.

É neste contexto que o pretexto inicial de comemoração de efeméride – um centenário do nascimento – se ultrapassa a si próprio e sugere a realização de um encontro científico norteado pela intenção epistemológica de reabrir e reperspectivar as temáticas fundamentais, acrescentando-lhes, se possível, outras ainda.
E não são apenas os temas bergmanianos clássicos que conhecem uma extensão, uma multiplicação e uma actualização, por assim dizer por via de uma lógica imanente: vindo ao seu encontro do lado oposto, tem-se vindo a assistir a todo um surto fecundo de renovação teórica nas múltiplas disciplinas convocáveis para a interpretação de uma obra cinematográfica maior como é a sua – e, centralmente, nos âmbitos dos estudos de cinema e da filosofia do cinema. Um tal reequacionamento crítico de tópicos teóricos clássicos (ex. g., a representação de género, a teoria do autor), ou a introdução de dominantes novas (a análise de contexto sócio-cultural, em complemento às tradicionais vias psicologistas e psicananalíticas; ou mesmo a variação da matriz psicanalítica, de Freud para Lacan, por exemplo), emprestam uma dinâmica hermenêutica suplementar, combinando um duplo movimento: o da coisa interpretada e o da sua interpretação.

Vectores cruzados e teoremas incompossíveis configuram, entretanto, o campo bergmaniano: auteur inequívoco ou senhor dos seus meios de expressão e produção, poucos todavia como Bergman ilustram melhor ‘em curso de obra’ a especificidade do medium cinema (como fundamento de criação antes e acima da autoria do ‘autor’); mas, por outro lado, raros, como Bergman, radicam mais essa ‘medium-especificidade’ na polifonia intermedial que ‘re-medeia’ [Bolter e Grusin] o teatral, o literário, o ‘existencialismo’, o pictórico, o musical – revertidos (sem perderem o seu grão diferencial) em ‘puro’ cinema. E, menos frequente ainda, fazendo-o com uma aguda consciência criativa das electivas afinidades que, numa singular inequação, abraçam o reino intermedial da tecnologia (ou ‘da arte’) e o domínio intersensorial da experiência humana (ou ‘da vida’).
O sinuoso gráfico da fortuna histórico-cultural de Bergman – ora no foco da ribalta, ora eclipsado em esquecimento, ora ressurgido num panteão que ele nunca podia ter abandonado –, desenha também uma historicidade da ‘estética da recepção’ do seu opus, que diz tanto do interpretado quanto dos intérpretes, tanto do objecto de estudo quanto das teorias que o abordam – e, sobretudo, do laço indissociável entre ambos os pólos do conhecimento. Um ‘conflito das interpretações’ alastrando na literatura secundária vem, pois, adicionar a sua especiaria a esse objecto fascinante tornado campo de estudo a segundo grau, e é nesse estado-da-arte que a reunião científica que nos propomos organizar o quer colher.
A persistência de Bergman nos filmes ‘da nossa ilha’ requer de nós tarefa similar à do cinema: voltar ainda e sempre a essa arte que é a de bem distribuir as luzes e as sombras.